terça-feira, 15 de maio de 2012

Enquanto todos dormiam


Foto: Divulgação

A pequena Alessandra era criada por Maria Antônia Santos Soares desde os 2 anos de idade e os pais se chamam Edvan e Jussara. A menina morava com a mãe “de criação” na rua Régis Pacheco quando, na manhã do dia 22 de julho de 2007, aconteceu algo que deixou dona Maria transtornada: ao se levantar por volta das 7 da manhã, ela foi acordar a garotinha para o banho e prepará-la para ir a escola. Encontrou a cama vazia. Segundo os relatos de dona Maria, Alessandra desapareceu em casa, enquanto todos dormiam. Não havia vestígios de arrombamento.

Editorial


Foto: Tom Correia

Ver as pessoas mostrando na TV, semanas após semanas, fotos esmaecidas de desaparecidos, sempre nos provocou forte inquietação. Este desconforto recorrente, marco inicial das pesquisas que resultaram neste Produto Experimental, nos impeliu a partir em busca das origens do desaparecimento. Após um ano e meio de investigação, terminamos por nos deparar com o contra-senso de leis que não se refletem em práticas eficazes, e, sobretudo, com as inúmeras falhas que circundam a investigação dos casos em Salvador. Também pesquisamos como o tema vem sendo tratado no Brasil e no Mundo.  

Para este Caderno Especial, entrevistamos Josenilda Lima, fundadora do recém extinto Movimento Simone Pinho. Ela conta sua saga envolvendo a trágica perda de sua filha até os últimos esforços para manter a instituição que auxiliava na localização de pessoas. A grande reportagem “Vidas Suspensas” apresenta o imenso painel que emoldura as intricadas ramificações do drama provocado pelo sumiço de uma pessoa, colocando em xeque a atuação dos órgãos estatais responsáveis pela solução dos casos, já que políticas públicas visando à prevenção são uma quimera. O Caso Glauber e o Caso Alice são apresentados em perfis que ilustram como a ausência de filhos queridos pode desequilibrar a harmonia familiar, apesar de toda obstinação e tentativas beirando o desespero para localizá-los.

Já o artigo do sociólogo Dijaci Oliveira, um dos maiores estudiosos do assunto, contesta os números oficiais apresentados pelo Ministério da Justiça. Há ainda uma mostra de como são executados programas de prevenção e solução de casos em países como o Canadá, Austrália e Reino Unido, o que nos rebaixa à condição de país jurássico quando se trata de eficiência na elucidação desse tipo de episódio. 

Infelizmente a necessidade, cada vez mais imperativa, de debater formas de atenuar a situação dos milhares de atingidos não parece estar na ordem do dia das instituições brasileiras. Ainda assim, esperamos que este TCC seja compreendido como uma colaboração no sentido de alertar a sociedade. E que as autoridades constituídas deixem de tratar o assunto com o descaso, a letargia e a explícita má vontade, como foi constatado durante a apuração, pesquisa e execução deste trabalho.

Entrevista: Josenilda Lima


MISSÃO CUMPRIDA

Uma mulher obstinada, marcada por uma tragédia pessoal e que não se rendeu aos obstáculos. Estes são alguns traços da personalidade da professora Josenilda Lima, 58, que em 2000 teve sua única filha, Simone Pinho, desaparecida na Chapada Diamantina. Foram quase seis anos de buscas e sepultamento após a descoberta do assassinato cometido por José Vicente Matias, o Corumbá, um matador em série. Josenilda perdeu as contas de quantas vezes se embrenhou pelas trilhas de cidades como Lençóis, Andaraí, Mucugê, Palmeiras e vilarejos como o Vale do Capão, na expectativa de rever Simone, mas, ao mesmo tempo, com um mau pressentimento de que algo muito sério havia acontecido. Obteve a ajuda de muita gente, de guias de turismo da região e grupo de hippies a donos de pousada que não cobravam diárias quando o dinheiro da professora acabava. Só o Estado demonstrou pouco empenho. “Tudo que enfrentei e ouvi para reencontrar minha filha foi algo digno de um filme, mas um filme de terror”, revolta-se. Desde então, abraçou a causa das pessoas desaparecidas no estado da Bahia. Em 2001, recebeu medalha da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa e, no ano seguinte, fundou o Movimento Simone Pinho, que fechou suas atividades após dez anos de atuação. Alguns fatos são considerados por ela como mensagens espirituais apontando o fim de sua missão: lançar “Na Trilha da Esperança”, livro-depoimento que narra todos os detalhes de sua busca, na abertura do I Encontro Nacional de Pessoas Desaparecidas; e devolver as chaves da sala onde funcionava o Movimento no mesmo dia da audiência de Corumbá, o assassino de Simone. Para a budista Josenilda, isso tudo é muito mais do que coincidência: é um claro sinal de que sua missão chegou ao fim.

Fotos: Tom Correia

Tom Correia - Como nasceu a instituição fundada por você para defender famílias que tinham parentes desaparecidos?

Josenilda Lima – O Movimento Nacional de Busca e Apoio a Pessoas Desaparecidas Simone Pinho foi criado pela dor de perder minha filha, desaparecida em junho de 2000. Pelo descaso dos órgãos constituídos, pela falta de apoio da polícia, vi que não era só eu que passava por aquela situação e sem ninguém para ajudar, eu transformei minha dor em solidariedade. Senti na pele a necessidade de uma organização para ajudar aquelas pessoas. Simone foi assassinada pelo serial killer José Vicente Matias, vulgo Corumbá, que ceifou a vida de seis mulheres em vários estados brasileiros. Minha filha foi sua segunda vítima e sofri demais nas buscas. Fui à Polinter e quem me atendeu foi a Drª. Clara [Delegada Clara Argolo]. Ela me tratou bem, foi sincera: disse pra mim que não tinha como mandar policiais para Lençois, que infelizmente não tinha sido aqui, e que os recursos não existiam. A única coisa que ela poderia fazer era um ofício para que eu levasse ao delegado de Lençois. Foi o que eu fiz, ela perguntou, você leva? Eu disse: 'me dá agora que eu já tô indo'. Fazia um mês que Simone estava desaparecida porque antes disso eu tinha resolvido procurar sozinha, pensei que ela  voltasse logo, que não precisasse de dar queixa numa delegacia. Mas quando a 'ficha caiu', vi que ela tinha desaparecido mesmo. Quando cheguei desesperada em Lençois com o ofício da Polinter na mão, eu chorava mais do que falava e o delegado de Lençois nem sequer me atendeu. Ele estava do lado de fora da delegacia e nem me convidou pra entrar, olhou o ofício e me devolveu na ali mesmo.

TC - Você lembra o nome do delegado? 
JL - José Carlos de Oliveira Couto, eu nunca vou esquecer esse nome na minha vida! [se exalta]. Enquanto vida tiver, vou falar desse delegado arbitrário, que não cumpriu com os deveres dele e cerceou o meu direito de mãe de procurar minha filha. Ele disse: 'Ora, senhora, sua filha é uma mulher. No mínimo ela deve estar ali no Capão usando drogas'. Isso não se fala para uma mãe! Ele não me conhecia, não sabia quem eu era, não conhecia Simone. Talvez se ele tivesse tomado as devidas providências naquela hora, ela ainda estivesse viva, porque ela foi assassinada logo depois. Não posso afirmar, mas talvez pudesse ter salvo minha filha ou a encontrado logo. O réu confessou o crime e pela data que ele deu (sei que não posso confiar na palavra de um assassino), ela ainda estava viva. Levei cinco anos e meio para descobrir a verdade e mais oito meses lutando na Justiça para que o assassino cruel mostrasse onde tinha enterrado o corpo. Só depois de seis anos o meu martírio acabou. Minha filha foi sepultada em 24 de março de 2006, mas a tristeza não tirou do meu coração a vontade de continuar ajudando, porque ninguém mais do que eu sabia o tamanho da dor que é ter uma pessoa querida desaparecida. 

Nota: a reportagem não conseguiu localizar o delegado citado pela entrevistada.

TC – O que levou o Movimento Simone Pinho a encerrar suas atividades? 
JL - Nossa ONG foi desativada porque apesar da diretoria ser composta de 13 pessoas, cada um tem os seus afazeres e só eu, como presidente, executava o trabalho. Para isso, eu dedicava meu tempo integral à entidade. Como sou professora da Prefeitura de Camaçari, fui obrigada a retomar minhas atividades naquele município, deixando a ONG funcionando apenas com voluntários. Mas meu afastamento se refletiu logo na queda do número de pessoas cadastradas e, principalmente, as localizadas. Não tinha a menor condição de fazer as duas coisas ao mesmo tempo: trabalhar 40 horas em Camaçari de segunda a sexta e tocar o Movimento. É como alguém já me disse: 'O Movimento Simone Pinho não existe, o Movimento é você'. E eu já vi que realmente sem Josenilda o Movimento Simone Pinho não existe. Então, como não podia abandonar meu trabalho, o fechamento foi inevitável.

TC – O Movimento contou com algum tipo de ajuda particular ou institucional, nunca houve apoio do governo?
JL - Infelizmente, não. O único apoio que tive foi da Casa Civil [Prefeitura de Salvador] e mesmo assim foi recentemente. Tentei fazer parcerias, mas ninguém dava importância aos meus projetos: eu levava, eles recebiam e depois perdiam porque quando eu voltava pra procurar não existia mais, ninguém sabia onde estava. E nunca era aprovado um projeto, nem mesmo pelo Fundo Municipal de Defesa à Criança e ao Adolescente. Não foram poucas vezes não. Empresários nem pensar. Só despertam quando sentem na pele. Durante todo esse período, a ONG foi mantida com recursos próprios. Eu dividia meu salário de professora para manter a instituição. A Casa Civil me ofereceu uma sala com telefone, internet, condomínio e luz, tudo pago por eles, para que eu deixasse de pagar aluguel, ajuda essa que vou agradecer pelo resto da vida,  pois foi a primeira e única. Eu também tinha ajuda do Movimento Mães da Sé, de São Paulo, que também trabalha com este fim, mas a parceria era restrita à divulgação das pessoas desaparecidas.


“Não saber o que aconteceu com seu ente querido é a pior situação, você morre por dentro a cada segundo”

TC – Como funcionava a parceria com a Coelba? 
JL - Eu mandava as fotos e eles divulgavam nas contas de energia de todo o estado da Bahia, com meu telefone. Se alguém sabia de alguma informação sobre aquele desaparecido ligava pra mim e aí eu tomava as providências, ligava pra saber se a informação era verdadeira para 'correr atrás', saber se realmente era o desaparecido procurado. A gente ligava pra família, íamos até o local onde estava a pessoa. Já aconteceram reencontros incríveis. Uma vez colocamos a foto de um jovem de Camaçari na conta de energia e alguém ligou pra mim dizendo que ele estava vivendo nas ruas em Periperi. Pedi que a pessoa segurasse o rapaz pra gente checar se era realmente ele. Liguei pra família, eles foram lá, ficaram em dúvida se era o rapaz. Fizeram o teste de impressões digitais, não deu positivo, mas mesmo assim essa família tirou esse jovem da rua, cuidou de sua saúde e o levou pra casa. Um belo dia, mesmo com os problemas mentais, ele falou o nome dele e disse onde a família morava. A senhora que o acolheu, pegou o endereço e foi ao local com ele. Quando a mãe viu o filho chegando, quase enlouqueceu de tanta alegria: o filho dela estava desaparecido há 10 anos e ela já se dizia sem esperança de reencontrá-lo. Veja só. Não foi o caso que divulgamos na Coelba, mas foi uma outra pessoa que também estava desaparecida. 




TC – Quanto foi investido no Movimento durante esses oito anos? 
JL - É difícil dizer porque algumas coisas eram contabilizadas quando tinha nota fiscal e o resto eu não contabilizava porque não era ninguém particular que me dava, era do meu bolso. Eu não precisava dar satisfação a ninguém, quem sempre manteve essa ong fui eu, com recursos próprios. Mas acredito que investi algo na faixa dos R$ 10 mil.

TC – Qual foi a reação das pessoas diante do fechamento da ONG?
JL - O desespero de quem sempre contou com o Movimento Simone Pinho era visível, as pessoas me perguntavam: 'E agora, o que vamos fazer sem você?'. Um dia, eu estava a caminho do trabalho em Camaçari e uma mãe ligou. Ela não chorava e sim gritava de tanto desespero, ela queria desabafar, precisava do meu apoio, queria chorar no ombro de quem compreendia a dor sentida. Ela só perguntava 'quando é que você volta? O que vai ser de nós sem você?'. E aí, já sabe o que acontece. De mãos atadas, sem poder fazer nada, também comecei a chorar. E assim vou seguindo em frente, rezando para cada uma delas, para que o seu desespero tenha um fim, porque por mais trágico que seja o resultado, não saber o que aconteceu com seu ente querido é a pior situação, você morre por dentro a cada segundo.


“Alguém que tiver o seu desaparecido que vá procurando outros meios porque a polícia só sabe tratar mal”

TC – Como você avalia a relação da mídia com os desaparecidos? Você acha que eles buscam apenas audiência ou prestam um serviço importante à população? 
JL - Olha, a mídia simplesmente mostra a foto dos desaparecidos. O trabalho de bastidores era feito pelo Movimento Simone Pinho. Quando as pessoas ligavam para informar onde estava aquele desaparecido era o Movimento que entrava em contato com as famílias. A mídia mesmo só mostra a foto. 

TC – Você considera o Estado omisso em relação aos desaparecidos? 
JL - E muito, muito mesmo. É preciso que eles acordem para esse grave problema social. Eu acho que eles estão esperando que aconteça na vida deles para poder reagir e tomar uma atitude. É muito omisso sim. Campanhas poderiam ser feitas e mesmo após o desaparecimento as diligências deveriam ser mais rápidas. 

TC – E como você avalia o tratamento dispensado às famílias que procuram a Polinter? 
JL - O que mais choca é o tratamento da polícia para com essas famílias, em total desespero, e ainda ouvir barbaridades como: 'Você ainda procura? Seu filho é um errado, que estava no local errado, na hora errada e com a pessoa errada. Desista, ele está morto'. Ou como o delegado de Lençóis me tratou, se recusando a receber o ofício que a Polinter lhe enviou, dizendo que minha filha era maior, que nada podia fazer e que a única viatura que ele tinha era para assessorar a política, pois estava na época de campanha eleitoral. O descaso da polícia é demais. No meu caso, poucas vezes a polícia ajudou, pelo contrário, às vezes atrapalhou muito. Alguém que tiver o seu desaparecido que vá procurando outros meios porque a polícia só sabe tratar mal, só te trata mal. As mães chegam chorando, apavoradas porque falaram dos filhos delas sem conhecer. Não se diz uma barbaridade para uma mãe que está sofrendo. Tem que ter mais humanidade.

TC – Além de catalogar 3.091 pessoas e ajudar a localizar 656 desaparecidos, quais as outras principais contribuições do Movimento para a sociedade? 
JL - O movimento colaborava com a mídia, com os quadros da TV Bahia e da TV Aratu.  Era eu que levava todas as famílias para procurar seus desaparecidos, então o prejuízo do fechamento do Movimento Simone Pinho é muito grande. Esse trabalho foi a melhor coisa que já me aconteceu. Eu descobri que feliz é quem dá e não quem recebe, descobri que a melhor coisa do mundo é ajudar. Quando você vê uma mãe desesperada, te pedindo socorro e você consegue fazer aquela pessoa voltar a sorrir, não há maior felicidade no mundo. Não sou mais a mesma depois desse trabalho. Aprendi a dar valor às pequenas coisas que antes não tinham importância, consigo enxergar muito mais além, a minha mente se expandiu e eu comecei a ver o mundo de uma maneira diferente, mais humana. Eu descobri que todos são iguais e que todos podem um dia acordar e não encontrar o seu ente querido, porque ele simplesmente desapareceu. Não foi só comigo, também pode acontecer com qualquer pessoa, é preciso ajudar se você quer um mundo melhor.


TC – O Movimento Simone Pinho não volta mais? 
JL - Olha, para registrar tudo certinho é uma mão-de-obra. Se eu soubesse antes, não sei se 'embarcaria' nessa. Mas como na época eu estava envolvida com o caso da minha filha assumi porque estava doendo mesmo, mas agora que esfriou, que a poeira baixou, eu já tenho consciência do que é fundar uma ONG, vou pensar duas vezes se vou fazer isso mesmo sem ajuda de ninguém. É muito difícil, é muita burocracia, muito tempo perdido, muita luta. Sinceramente eu não abriria mais não. Eu poderia tentar ajudar de uma outra forma, mas como funciona hoje, devidamente registrada, com tudo legalizado nos órgãos, não sei se faria mais. Quando me aposentar, aí vou pensar de que forma vou continuar a ajudar os desaparecidos. Agora, com essa responsabilidade que tomei pra mim sozinha, não sei se teria coragem não...


“Não se diz uma barbaridade para uma mãe que está sofrendo. Tem que ter mais humanidade”

TC – O site do Simone Pinho vai continuar ativo? 
JL - Vai. É a única coisa que ninguém pode me obrigar a fechar. Até quando eu puder vou continuar com esse site ativo. Os cadastros na Piedade não vão continuar porque não tenho condição, mas quem quiser pode fazer o próprio registro da pessoa no site. 

TC – Valeu a pena, Josenilda? 
JL - Só valeu... e como valeu... e digo com pureza d'alma que não sou a mesma pessoa de jeito nenhum. Depois desse trabalho, sou uma pessoa riquíssima espiritualmente, e outra coisa, com uma fortaleza dentro de mim que não adianta: não venha, porque se ficar na minha frente vou esmagar. Se é pra me prejudicar ou pra prejudicar alguém desaparecido, saia da minha frente, porque se eu disser ‘vou vencer’, ninguém me derruba, não. Se eu tomar pra mim aquela dor, vou vencer. Josenilda antes não dava uma palavra, era aquela pessoa tranquila, que não conversava, mais ouvia do que falava... hoje falo mais do que ouço, falo muito porque tenho muito a dizer. E a experiência que eu passei não tem universidade que supere.

* Esta entrevista contou com a colaboração da jornalista Arlita Santana, que assinava a coluna “Onde Está?” do site www.aqueimaroupa.com.br

Vidas suspensas


DESAPARECIDOS:
ausências que fazem o tempo parar

As causas, as sequelas, as estatísticas. Entenda como seria possível prevenir as ocorrências e por que os casos sem solução ilustram um drama de impacto social cada vez maior em Salvador

Perder um filho, mãe, pai ou irmão e não saber onde eles estão é uma realidade diária na capital baiana. Em dez anos, foram quase 8 mil pessoas que se ausentaram sem vestígios e mesmo após a localização ou retorno, ainda restam 2.250 pessoas extraviadas. Em média, são dois cidadãos que somem todos os dias nos bairros soteropolitanos, especialmente na periferia, mas os números podem ser muito mais expressivos. Má vontade política, descaso, falta de delegacias especializadas e de integração entre os órgãos competentes, investigação precária e núcleo familiar sem estrutura são os componentes  encobertos  pelas estatísticas. Por sua vez, o Estado patina ao tentar viabilizar políticas públicas eficazes. Números de ONG's sugerem 40.000 pessoas deslocadas dos seus domicílios, mas ninguém sabe ao certo quantos desaparecidos existem atualmente no Brasil. Enquanto isso, a espera dos familiares pode ser longa. Às vezes, dura uma vida inteira estagnada: sem notícias, sem definição.


Foto: Tom Correia

Então é assim que acontece. A pessoa que você mais ama, uma das mais especiais, a quem você dedica parte substancial de sua existência, lhe dá um beijo, acena ou faz um carinho, diz algumas palavras corriqueiras, sai pela porta em direção à escola, ao trabalho, à esquina, e simplesmente desaparece. Não importa a idade, o parentesco. Criança, adulto, idoso. Pai, mãe, filho. Irmã, sobrinho, esposa, marido. Não importa o motivo, se por uma discussão em casa, se conheceu um estranho na rua ou pela internet, se foi alvo de rapto ou queima de arquivo. Façam parte de situação de risco ou não, sofrendo de doença mental ou não, quem parte desconhece a dimensão da dor provocada pelo vazio. Quem fica para trás, com aperto no coração, só começa a perceber que algo mais sério aconteceu depois que as horas se multiplicam, os dias se desdobram. 

Sábado, dia dos namorados, 2010. Luciano Santos, 29, levantou-se cedo, arrumou suas coisas e conferiu no relógio que estava atrasado, já havia perdido o ônibus das sete da manhã que o levaria até a Brasquímica, fábrica de produtos asfálticos do Distrito Industrial de Candeias. Morando no bairro de Águas Claras, vivendo há sete anos com a vendedora ambulante e evangélica Diene Lima, 32, Luciano deu o presente da esposa, um kit de óleo corporal da Natura e recebeu um perfume Kayak. Pai de Amanda, 4 anos, e padrasto amoroso de Jennifer, 15 e Richard, 9, o operador industrial estava em ascensão profissional: começara como auxiliar de serviços gerais e, em cinco anos, foi promovido três vezes. Para encorpar o orçamento, Diene vende bebidas numa barraca no Centro Histórico. Antes de sair, ele deu um beijo na mulher e disse: “Se eu não vier pra casa, encontro você no Pelourinho”. 

Silêncio que fala por si


Foto: Divulgação
Foram inúmeros os contatos feitos com a Secretaria de Segurança Pública, através da Assessoria de Comunicação, no sentido de se realizarem entrevistas com o delegado chefe Joselito Bispo (foto) e o coordenador da Polinter, delegado Joelson Reis. Apesar da promessa do assessor Cláudio Pimentel em atender às solicitações para esta reportagem, perguntas essenciais para entender o desaparecimento em Salvador não foram respondidas nem mesmo por correio eletrônico. Algumas delas:


  • Por que os números de desaparecidos não são disponibilizados no site da SSP? 

  • O que é feito com os dados estatísticos após o envio de boletins ao Centro de Documentação e Estatística Policial? Há algum tipo de encaminhamento para que se implementem medidas de prevenção?

  • Como o desempenho da Polinter é avaliado no que se refere às investigações e localização de desaparecidos? 
  • Os resultados são satisfatórios? 
  • Por que as ocorrências só são registradas após 24 ou 48 horas, ao contrário do que estabelece a Lei Federal 11.259?

  • Como pode ser interpretada a ausência de autoridades do Governo do Estado no I Encontro Nacional sobre Pessoas Desaparecidas, realizado nos dias 16 e 17 de setembro deste ano em Salvador?

O que fazer se alguém desaparece

                                                                              Foto: Tom Correia


IMPORTANTE!

Segundo a Lei 11.259/05, não é necessário esperar 24 horas para registrar boletim de ocorrência. As primeiras horas podem ser cruciais para localização e proteção do desaparecido.


O QUE FAZER


1. Mantenha a calma e inicie as buscas próximo ao local em que a pessoa sumiu. Pergunte às pessoas, vasculhe as imediações e avise imediatamente a parentes e amigos.

2. Registre imediatamente a ocorrência na delegacia responsável pela investigação de desaparecidos. 

3. Faça uma busca nas delegacias, hospitais, pronto-socorros e, em último caso, no Instituto Médico Legal.

4. No caso de uma criança, mantenha uma pessoa no local em que ela foi vista pela última vez; ela pode retornar ao mesmo lugar.

5. Tenha sempre uma foto da pessoa, além de fornecer detalhes como idade, sinais particulares e roupa que ela estava usando ao desaparecer. 

6. Procure os meios de comunicação para solicitar a divulgação do caso.


COMO TENTAR EVITAR  
Ocorrências com Crianças e Adolescentes


1. Torne-se amigo e confidente do seu filho, fazendo-o se sentir seguro para contar qualquer coisa a você. Observe mudanças de comportamento;


2. Observe novos vizinhos com hábitos estranhos em relação a crianças (casas sempre trancadas, falta de sociabilidade) e, caso haja alguma suspeita, não hesite em chamar a polícia;


3. Verifique com quem seu filho está se correspondendo pela Internet (orkut, salas de bate papo, msn, e-mails)


4.  Deixe orientação explícita na escola sobre quem pode buscar a criança;


5. Evite pedir para crianças irem sozinhas a comércios, lojas e lugares de grande circulação de pessoas;


6. Ao sair com a criança para um lugar de maior movimentação de pessoas, faça um pequeno crachá com seu nome, endereço, telefone e prenda na roupa do seu filho. 


Fonte: www.cpicriancasdesaparecidas.com.br 



Pontos-chave | Desaparecimento em Salvador

Foto: Tom Correia


1. Falta de efetivo e treinamento especializado 
Necessidade de contratação de agentes e reestruturação do curso de policiais civis, atualmente com duração de três meses.

2. Infra-estrutura precária
Basicamente a aquisição de armamentos, viaturas, equipamentos e reforma das delegacias depende de dotação orçamentária.

3. Estatísticas de baixa qualidade
Interpretação dos dados colhidos junto aos familiares geraria banco de dados com alto grau de precisão, identificando o perfil do desaparecido.

4. Relacionamento distante com a mídia
Historicamente a relação da Polícia com a imprensa é marcada por tensões, mas uma aproximação em nome de ações articuladas poderia marcar uma nova fase entre jornalistas e agentes da Secretaria de Segurança Pública.

5. Transferência da investigação para as famílias
A maioria das famílias não possui recursos financeiros nem técnicos para deslocamento e averiguação. Além de expor ao risco quem procura seus parentes, a “terceirização” invalida os números oficiais de casos solucionados.

6. Foco na investigação policial desconsiderando o aspecto social do desaparecimento
A Polinter é especializada em Busca e Apreensão autorizadas por mandados judiciais. Em todo o país não existe uma delegacia que trabalhe exclusivamente com os desaparecidos, o que se reflete em atendimento desumanizado ao cidadão.

7. Relação utilitária com instituições que atuam na busca de desaparecidos
As ONG's que cuidam de desaparecidos em Salvador são taxativas ao afirmar que a Polinter encaminha os casos (outro tipo de “terceirização”), mas não concede o crédito pelas localizações. Uma parceria institucional talvez fosse uma saída.

8. Perpetuação da cultura das 24 horas para registrar ocorrência
Todos os entrevistados afirmaram que só puderam fazer o registro após um dia de o fato acontecer. Sem saber dos seus direitos, as famílias poderiam apelar para a lei 11.259 e obrigar os agentes a registrarem o boletim.

9. Falta de integração com outros órgãos do Estado (Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, Ação Social, Ministério Público) para estabelecer ações conjuntas
O trabalho conjunto provavelmente implicaria resultados satisfatórios, como campanhas educativas, criação de canais diretos para denúncias e mobilização da sociedade. No exterior, as ações integradas são um dos pilares para a prevenção.

Caminhos distorcidos na Polinter


TRIAGEM
Servidor define, de acordo com seus critérios, se o caso merece maior ou menor atenção, 
não importa se de origem delituosa ou social. 
Famílias são orientadas a só retornarem após 
24 ou 48 horas do desaparecimento.

CHECAGEM POR TELEFONE
Apuração limitada a contatos telefônicos torna mais remotas as possibilidades de localização.

REGISTRO
BOLETIM DE OCORRÊNCIA
Vagas orientações são passadas às famílias, como ir ao IML uma vez por semana.


INVESTIGAÇÃO
As famílias apenas são informadas sobre avistamentos, tornando-se responsáveis diretas pela averiguação.

DEPOIMENTOS


DOSSIÊ / INQUÉRITO


ESTATÍSTICAS
Alto índice de localização não é reflexo de investigação efetiva. 
ONG's denunciam que não recebem os créditos pela solução dos casos.

COLETA MENSAL
DE OCORRÊNCIAS
Dados de baixíssima qualidade, com ênfase na burocracia, 
inviabilizam a identificação do perfil do desaparecido em Salvador. 
Resultados não são divulgados.



Um certo Glauber

Há um ano e três meses, o jovem saía de casa e desaparecia próximo ao prédio onde trabalhava, numa das avenidas mais movimentadas de Salvador

Foto: Reprodução

“Morreu, seu filho está morto”. Esta foi a frase que a aposentada Marisa Santos, 63, escutou de um agente da Polinter, aonde fora buscar notícias sobre Glauber Fausto da Silva Santos, 27, desaparecido em 21 de agosto de 2009. Moradora do bairro da Valéria, no limite do perímetro urbano, dona Marisa também é mãe de Aline e George, mas Glauber era o mais apegado a ela: não pensava em se casar e vivia bem em casa, apaixonado por surf e motocicletas. 

A cama do rapaz que tem tatuagens no braço e na barriga – um Patolino e uma gárgula, figura mitológica metade humana e metade monstro – continua arrumada, do jeito que ele viu ao sair para trabalhar no Centro de Operações Financeiras Petrobras, localizado na avenida Tancredo Neves, na manhã de uma sexta-feira. Naquele dia, dona Marisa fez o almoço para ele levar, preparou sua mochila e recebeu do filho um beijo na testa como forma de agradecimento. O auxiliar administrativo pediu carona a George, já que a moto estava com problemas. Antes de sair, foi ao quarto, colocou uma corrente de prata e perguntou: 

“Mãe, estou bonito?”
“Meu filho, você é sempre bonito, mas deixe pra usar isso amanhã que é sábado”.
“A senhora arruma meu quarto?”
“Você sabe que eu arrumo toda sexta...”
“Mas eu quero que a senhora arrume agora”.

Dona Marisa se despediu do filho e ao entrar no quarto percebeu que ele havia deixado sua pochete, coisa que jamais fazia. Outra coisa que chamou a atenção foi o lençol estirado, a cama arrumada, algo também que não era do feitio de Glauber. A mãe só pressentiu que as coisas não iam bem quando não recebeu os telefonemas costumeiros do filho, por volta das 9 da manhã e ao meio-dia, antes do almoço. Àquela altura, George já havia recebido ligação da empresa por volta das 8 da manhã, pois Glauber não havia batido o ponto, mas Dona Marisa só saberia disso? na manhã de domingo. “Quando eu ouvi 'minha mãe, o Glauber desapareceu', aí pronto, foi o fim. Até hoje não costurei a bermuda que ele pediu para consertar porque estou esperando por ele...”, afirma.

O percurso das buscas foi o mesmo seguido por outras famílias: registro na Polinter após 24 horas (por orientação dos agentes), procura no Instituto Médico Legal e anúncio no Quadro Desaparecidos da TV Bahia. Além disso, espalharam cartazes pela cidade, na esperança de obter alguma informação. Nada, nenhum telefonema foi recebido. D. Marisa e George acreditam que investiram cerca de R$ 10 mil com a divulgação de fotos, organização de grupos de motociclistas que já percorreram locais como a ilha de Itaparica e a contratação de um detetive. De acordo com os dados oficiais, foram 645 casos de desaparecimento em Salvador no ano de 2009, dos quais 541 foram encontrados, grupo que não inclui o filho de dona Marisa. 

    CAMINHOS TURVOS | Apesar das informações de agentes da Polinter, 
dona Marisa ainda esperar reencontrar o filho com vida. Foto: Tom Correia.


No sábado, 21 de agosto, exatamente um ano após o desaparecimento, a aposentada chegou ao quarto arrumado com a nítida sensação de que ele estaria lá. Chegou na entrada e disse “Glauber, cheguei”, tentando imitar a forma como o filho fazia ao voltar da rua. “Até hoje não me conformei, não consigo me concentrar nas coisas. Perdi o ânimo até de ir à Igreja Renascer, único lugar onde encontrei algum tipo de conforto”, murmura.  A família acredita que o sumiço de Glauber tenha relação com o tráfico na região, já que ele era usuário de drogas. Além disso, a família alugou um imóvel a um suposto traficante, um dos suspeitos pelo desaparecimento. Segundo George, o detetive descobriu através de gravações telefônicas e fotografias que há fortes indícios da eliminação do irmão, mas para resolver o caso eles teriam de abandonar a casa onde moram. “Ele jamais saía de casa sem dizer onde estava, além de ser muito 'família'. Não gostava nem de comer na rua, dizia que passava mal, que só se sentia bem em casa”, relembra George. A causa provável do desaparecimento pode ser outro fator que desmotiva a polícia para investigar o caso em profundidade, deixando os parentes em eterno suspense, já que não há prova material do suposto crime. Atenta aos entraves policiais e judiciários, dona Marisa queria apenas uma resposta diferente da que recebeu. 

“Ouvir que meu filho está morto foi muito duro pra mim, eu disse ao agente. Ele me respondeu apenas que eu tinha de me conformar, pois a polícia trabalha apenas com a realidade”, conclui.

Os passos perdidos de Alice


                                           Foto: Álbum de Família
Um desaparecimento inexplicável e sem respostas há onze anos, mas que pelos indícios esteve muito perto de um final feliz

As avenidas que fazem parte do circuito de carnaval de Salvador estavam abarrotadas no dia 14 de fevereiro de 1999, um domingo. No meio da confusão de milhares de foliões seguindo os trios elétricos, uma pessoa em estado de choque antevia o rosto de sua filha em cada criança no caminho. Em cada canto do Campo Grande, Barra e Pelourinho havia uma mãe em particular com o coração aos pulos, abrindo passagem entre a multidão alheia e alegre que sambava ao som de “Juliana”, sucesso da época cantado por Pierre Onassis, então vocalista do grupo Bom Balanço.  A despeito de toda semelhança, a busca frenética ao virar cada garotinha de frente, desvelava uma angustiante sequência de pequenas decepções; o som da pretensa alegria dos trios era a trilha musical que marcava o ritmo da procura por uma menina que vestia saia e blusa lilás e usava uma sandália plástica da mesma cor; tinha o cabelo solto na parte de trás e preso em cima com uma “xuxa” de crochê rosa. Além disso, usava uma argolinha do piu-piu. Era Alice Ane Giselle dos Santos, 10 anos completados dois dias antes. A vizinhança da rua Souza Uzel, 51, Federação, se mobilizara naquela tarde carnavalesca, a mais dolorosa de todas para a costureira Mari Neide e o mecânico Eduardo, pais da menina que já chamava a atenção devido ao corpo que já se desenvolvia, prometendo uma bela adolescente. A mãe se preparava para fazer um bolo de aniversário para seu Alfredo, avô de Alice, quando ela chegara do mercado trazendo farinha de trigo. “Mainha, vou pra casa de minha tia brincar com Graziele”, disse, logo depois. A casa ficava a uns 50 metros. Alice foi até lá e durante poucos minutos brincou com a prima até resolver voltar pra casa. Era sua intenção.
 
A voz ainda trêmula e os olhos marejados de Mari Neide denunciam a dor causada pela ausência prolongada da única filha, com quem só andava de braços dados. A falta da criança fortaleceu a relação do casal, que já havia decidido não ter mais filhos. A mãe passou a se sentir um zumbi dentro de um pesadelo, perdeu peso e ainda que abalada emocionalmente, não teve nenhum acompanhamento psicológico; o pai, “enlouquecido”, durante anos seguidos se dedicou a investigar por conta própria. A qualquer hora, em qualquer lugar, ele estava em busca de Alice, chegando a acordar os mendigos que dormiam na Estação da Lapa para perguntar pela menina, mostrando sua foto.

DESAPEGO E CRENÇA | Mari Neide já se desfez dos brinquedos, 
mas ainda guarda roupas e retratos da filha. Foto: Tom Correia

Como consequência, a situação financeira da família entrava em declínio. Eduardo começou a perder os clientes, já que não conseguia mais se concentrar no trabalho. O casal deixou o apartamento em Colinas de Pituaçu, que terminou sendo invadido e hoje é disputado em questão judicial. Passaram a morar com o pai de Mari Neide, na mesma casa onde viram Alice pela última vez. “No início as pessoas nos ajudaram, mas o tempo vai passando e elas foram se afastando, porque cada pessoa tem sua vida pra cuidar. Apesar da gente ouvir alguma palavra de conforto, o problema passa a ser só seu. Até as autoridades passam a enxergar a situação como algo normal”, relata, Mari Neide. Segundo a Polinter, em fevereiro de 1999 foram registradas 12 ocorrências de desaparecimento em Salvador. Apenas uma criança do sexo feminino consta nos relatórios. É o caso de Alice. Faz 11 anos e 9 meses que a menina meiga e estudiosa desapareceu, deixando os pais arrasados emocional e financeiramente. As despesas incluíam contas telefônicas astronômicas, viagens a cidades como Ilhéus e até combustível dos carros emprestados aos agentes para que fizessem investigação.

Riscos e quase re-encontro
Em dois momentos, durante todo esse tempo, os pais de Alice acreditam que seguiram pistas capazes de solucionar o caso, mas foram obrigados a parar por chegarem aos seus limites. Através de uma informação que chegou da Polinter, eles foram atrás de uma mulher que havia ligado dizendo saber onde estava a menina. Passaram uma semana indo à invasão do Inferninho, no bairro da Mata Escura. Além do aspecto tenebroso do lugar, outro detalhe chamou a atenção do casal. “Quando a gente mostrava a foto, as pessoas diziam 'não sei, não vi, não conheço' e corriam assustadas pra dentro de casa. Depois passamos pra polícia o que fizemos e eles disseram que éramos loucos, que a gente não deveria ter ido naquele lugar sozinhos, porque nem eles tinham coragem de entrar naquele lugar”, relata. A outra pista foi investigada por eles em Barra do Pojuca, povoado que pertence a Camaçari. Com carro emprestado, passaram um tempo visitando escolas e mostrando a foto da filha. Lá descobriram que uma mulher estrangeira havia tentando matricular uma criança muito parecida com Alice, mas a menina não tinha documentos, o que impediu o registro. Sem mais recursos para continuar viajando, não foram adiante, mas informaram tudo à Polinter. Especialistas afirmam ser raros os casos de crianças desaparecidas que reaparecem após tanto tempo. “Sonho com ela, só que no meu sonho ela não cresceu, não ficou adulta ainda, vejo sempre da mesma forma quando ela desapareceu. Mas é uma coisa que ninguém tira da minha mente: eu só vivo pra encontrar minha filha”, reafirma.

A farda nova comprada para Alice cursar a quinta série ainda permanece guardada, junto a antigos brinquedos. Mari Neide afirma que já jogou muita coisa fora, tentando se desapegar da menina ao se livrar dos pertences. Ela acredita num reencontro que toma a forma de um milagre.

Desaparecidos lá fora

MUNDO SOLIDÁRIO 
Auxílio financeiro e emocional às famílias, programas de prevenção, linha telefônica gratuita para denúncias e disparo imediato de alerta nos meios de comunicação. Veja como o desaparecimento de pessoas é tratado no exterior 


Foto: Divulgação


Comparar o quadro no Brasil com a atuação de instituições estrangeiras, mostra como drama enfrentado pelas famílias daqui está longe de receber a atenção devida. Em países como o Canadá, Austrália, Comunidade Europeia, Estados Unidos e Reino Unido, a preocupação em relação ao tema, envolve tanto o governo, o terceiro setor e veículos de comunicação. Como se não bastassem as diferenças em pontos cruciais como as quantias investidas, a qualidade das estatísticas, a produção de pesquisas e artigos que ajudam a entender o problema, há três outros fatores essenciais que determinam a eficiência para localizar pessoas: agilidade nas buscas, promoção de políticas públicas e atuação conjunta da polícia e de organizações civis. Confira o que cada país faz para reencontrar seus desaparecidos ou para evitar que o fato aconteça. 


Austrália Além da forma organizada como concentram informações as autoridades australianas se destacam pelo extenso número de pesquisas e artigos que tentam entender e prevenir o fenômeno. Os casos são investigados por oito unidades especializadas espalhadas pelo país, com apoio da Polícia Federal e parceria com cinco agências de buscas que oferecem auxílio gratuito às famílias. As ocorrências são estudadas para estabelecer perfil, modo e causas do desaparecimento, permitindo que o governo desenvolva campanhas anuais de conscientização. Com os estudos, eles chegaram a conclusões apontando que cada desaparecimento afeta diretamente doze pessoas em média, refletindo em prejuízos econômicos e também na queda de rendimento no trabalho de funcionários que perderam alguém. O governo australiano oferece aconselhamento psicológico e apoio emocional às famílias envolvidas numa situação de perda. As pesquisas australianas abrangem detalhes como orientar as pessoas que se ressentem ainda mais dos desaparecidos em datas especiais, como aniversários e outras datas significativas. As famílias são orientadas a atuarem em conjunto com a polícia e os meios de comunicação, estimulando que as informações sejam atualizadas a cada nova pista descoberta. http://www.missingpersons.gov.au  

Canadá O Serviço Nacional de Crianças Desaparecidas, administrado pela Polícia Real Montada canadense, se destaca pela série de medidas que ameniza e previne o extravio de pessoas do ambiente familiar. Contudo, apesar do modo exemplar como o país trata os desaparecidos, ainda que crianças e adolescentes sejam mais protegidos, as estatísticas apontam para números como os registrados em 2009: 50.492 casos de desaparecimento, sendo que 35.768 foram ocasionados por fuga. Atualmente, onze programas específicos estão em prática no país e que auxiliam o cidadão oferecendo assistência a pais que não podem arcar com as despesas de viagens domésticas ou internacionais para reencontrar seus filhos. As passagens aéreas são fornecidas gratuitamente após criterioso acompanhamento do caso. O Amber Alert é baseado no modelo norte-americano [ver abaixo] e envolve parcerias com voluntários, meios de comunicação e ONG's para mobilizar as buscas. Outro recurso é um software utilizado nos casos de desaparecimento ocorridos há mais de dois anos. Trata-se de um processo de envelhecimento fotográfico que ajuda a divulgar a provável aparência atual da pessoa, facilitando o reconhecimento e aumentando as chances de um reencontro. Funcionários do governo, investigadores, departamentos da polícia, cidadãos e instituições que se dedicam ao fenômeno também são reconhecidos com condecorações. A premiação consiste em passagens aéreas para voos domésticos, destinada a pessoas físicas ou jurídicas que se destacam por ajudar nas investigações ou na solução de casos de desaparecimento. Além disso, são oferecidos várias vezes por ano, dois dias de treinamento específico para atualização de profissionais que atuam diretamente com os casos de desaparecimento, como investigadores e representantes da lei canadense. A rede mundial de computadores também passou a ser uma fonte de preocupação das autoridades canadenses. Entre 2000 e 2008, foram realizadas 33 investigações on line, auxiliadas pela Interpol e que originando um manual com dicas de segurança para lidar com o mundo virtual. Outras medidas envolvem estatísticas atualizadas, integração do governo e sociedade civil num esforço conjunto de combate ao desaparecimento, extensa rede de parceiros em outros países que facilitam a localização fora do território canadense. 

Comunidade Europeia Na Europa, a Missing Children Europe foi criada em 2001 e atualmente reúne 24 ONG's de 17 países, incluindo a Suíça, para combater o desaparecimento de crianças e adolescentes. Atendendo a uma determinação da Comissão Europeia de fevereiro de 2007, a organização disponibiliza o número 116000 no qual esclarece o assunto através de dicas para a família, manual de conduta e melhores práticas e perguntas mais frequentes sobre desaparecimentos. Uma das iniciativas da MCE é distribuir gratuitamente braceletes de identificação para os pais e responsáveis colocarem nos filhos. [www.missinchildreneurope.eu] [http://www.hotline116000.eu/] ESTADOS UNIDOS O país foi um dos primeiros a tomar medidas contra o desaparecimento de pessoas, especialmente de crianças e adolescentes. Em 1981, foi instituído o 25 de maio como o Dia Internacional de Crianças Desaparecidas e desde então uma série de medidas foi criada, como a criação do Amber Alert, em 1996, do Amber Alert, um comunicado acionado pela polícia, após checagem detalhada, para informar rapidamente sobre o desaparecimento de criança ou adolescente vítima de rapto ou sequestro. Em casos excepcionais, são emitidos alarmes sobre o sumiço de adultos vulneráveis. O sinal é veiculado imediatamente por estações de rádio, canais abertos e fechados de TV, além de utilizar correio eletrônico e outdoors luminosos, já que especialistas consideram as primeiras três horas como cruciais para a vida do desaparecido. O Amber é registrado também no Centro Nacional de Informação sobre o Crime, órgão ligado ao FBI. No final de 2002, o sistema foi adotado também pelo Canadá e atualmente seis outros países possuem um alerta que segue as premissas norte-americanas: Austrália, França, Grécia, Holanda, Irlanda e Malásia. A organização Office of Juvenile Justice and Deliquency Prevention é uma das centenas que atuam na questão de desaparecimento infanto-juvenil em parceria com o Departamento de Justiça Norte-americano, emitindo relatórios e estatísticas que são utilizadas em políticas públicas que se refletem na vida prática do cidadão. [http://www.ojjdp.gov/]

Reino Unido A organização inglesa Missing People investe anualmente cerca de 1,9 bilhão de Libras Esterlinas (cerca de R$ 5 milhões) para oferecer apoio gratuito aos familiares de desaparecidos, estimados em 250 mil pessoas/ano. Entre 2010 e 2013, a organização pretende implementar novos serviços de apoio, orientação e suporte psicológico e financeiro para os que sofrem com as consequências de desaparecimentos de parentes e amigos. Destacam-se serviços como linha telefônica (nº 116000) exclusiva para atender a população em pontos espalhados pelo país, agilizando a informação quando um desaparecido é visto; extensa rede de voluntários mobilizados nas grandes e pequenas cidades mobilizados em torno de ações promovidas pela instituição; acompanhamento por profissionais de psicologia a fim de oferecer conforto emocional à família. Além disso, a MP promove parcerias com o governo e organizações de voluntários que otimizam o atendimento à população. A Missing People busca ainda influenciar na legislação do país em busca de implantação de políticas públicas e de melhorias das práticas já em vigor. [www.missingpeople.org.uk]

Porta que se abre

Fundada em 2008, organização baseada no voluntariado acolhe e atende gratuitamente quem procura ajuda nas buscas. O melhor: já conseguiu solucionar mais de 50% dos casos registrados


Foto: Tom Correia
A sala 509 do Edifício Adolfo Basbaum, localizado no centro da cidade, próximo ao Mosteiro de São Bento, possui grande movimentação às quartas-feiras. Quem se concentra na Praça da Piedade para tentar participar do Quadro exibido pela TV Bahia, é informado sobre a existência do Interbusca Desaparecidos, e se dirigem para o local na expectativa de aumentar as chances de reencontro. Nas dependências do prédio, o que se vê são vários agentes masculinos e femininos, com uniformes pretos, anotando a ocorrência e perguntando detalhes que podem ser fundamentais para elucidação do caso. Paulo Reis, 37, (foto) é funcionário da Secretaria de Turismo do Estado da Bahia (Setur), atuou como mediador no Balcão de Justiça durante 10 anos e sua prática atendendo às pessoas, despertou aos poucos o interesse pelos desaparecidos. Reis é fundador e presidente da organização, registrada no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente (CMDCA), e que desde 2009 já localizou 32 pessoas do total de 57 registros. “Nosso trabalho nasceu porque vimos que se tratava de uma necessidade muito grande que não vinha sendo atendida pelos órgãos que deveriam tratar do assunto”, afirma. 

Mantida por doações de pessoas comprometidas com a causa, o Interbusca já pleiteia recursos ao Fundo do CMDCA e apresentou proposta de parceria com o Ministério Público do Estado. A ideia é ampliar o serviço prestado à população, que às vezes não possui dinheiro nem mesmo para a condução. Entretanto, segundo o presidente, toda a iniciativa de atuar em prol dos desaparecidos não parece estar sendo bem vista pelo poder público. Um agente chegou à 12ª Delegacia com um ofício solicitando a localização da pessoa e em vez de o policial verificar quem estava sendo procurado, resolveu investigar se o agente tinha passagem pela unidade. “O policial questionou se estávamos colocando à prova o trabalho da polícia. Na verdade queremos somar, mas constatamos que nossos resultados estão começando a incomodar”, ressalta Reis. De segunda a sexta, das 9 às 17h, 62 agentes voluntários se revezam em turnos semanais de oito horas. 

O presidente do Interbusca credita a solução dos casos à orientação que os agentes recebem, a de permanecerem sempre atentos mesmo fora dos plantões. Foi assim que Hildemária Ataíde, 34, foi encontrada perambulando pelo bairro de Cosme de Farias por um agente que voltava da musculação. Hildemária sofre de esquizofrenia e só foi reconhecida por um detalhe anatômico que pode ser visto na foto deixada no Interbusca pela família: um defeito num dos dedos do pé. Moradora do Doron, dona Ana Clara Ataíde, tia de Hildemária, afirma ter recebido da instituição apoio para conseguir internar a filha no Hospital Juliano Moreira. “Fui muito bem atendida, eles são muito atenciosos. Tivemos muita sorte porque oito dias depois de registrar a ocorrência, eles localizaram minha sobrinha. Agora temos mais cuidado para que ela não desapareça novamente”, relata.


Informações: 
Interbusca Desaparecidos
Av. Sete de Setembro, 202 - Ed. Basbaum, sala 509
71 3487-3332

Quantos são?

As estatísticas no Brasil são frágeis e imprecisas


Dijaci Oliveira
Desde que foi criado, o site do Ministério da Justiça tem servido como referência oficial sobre o panorama dos desaparecimentos de pessoas. Na maior parte dos Estados, os dados são inacessíveis ou de péssima qualidade. Isso dificulta formular políticas mais eficientes para o enfrentamento do fenômeno. Sentimos falta de uma política de segurança que estimule uma investigação aprofundada sobre os dados criminais no Brasil. Segundo o site www.desaparecidos.gov.br, de janeiro de 2000 aos dias atuais, foram registrados 1.267 casos de pessoas desaparecidas. Conforme os números, Brasília aparece em primeiro lugar com 299 desaparecimentos; em segundo fica o Rio de Janeiro com 146 casos; Sergipe vem em terceiro com 128; São Paulo logo atrás com 126 ocorrências. Goiás estaria em quinto, contabilizando 97 casos. Destes, 73 já teriam sido resolvidos e 24 permanecem sem solução. Mas o que dizem tais números?


Eles incomodam. Pela dor que provocam nos familiares dos desaparecidos, pela ausência de uma organização policial mais eficiente que permita a elucidação e pela fragilidade das informações produzidas no Brasil. Mas quais os problemas em relação aos dados? Diante dos relatórios sobre desaparecimentos em outros países, percebe-se claramente um descompasso nos dados do Brasil. Vamos tomar três exemplos: França, Canadá e Estados Unidos. Conforme dados do Office of Juvenile Justice and Delinquency Prevention (OJJDP), ligado ao Departamento de Justiça dos EUA, em 1999 desapareceram 204,5 mil pessoas e em 2002 os números sobem para 797,5 mil. Na França, conforme a Manu Association, 56.073 pessoas desapareceram em 2007 e outras 59.480 em 2008. Já o Services Nationaux des Enfants Disparus, do Canadá, informa que anualmente desaparecem, em média, 65 mil crianças e adolescentes. Ao compararmos os dados do Brasil com esses três países, obviamente nos indagamos sobre o que produz essa disparidade entre os números.

A resposta está na metodologia que utilizamos. Nossos dados são frágeis e não representam uma leitura adequada da realidade. Em pesquisa realizada no ano passado no Rio de Janeiro pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), o sociólogo Gláucio Soares analisou 4.637 casos de desaparecimentos ocorridos em 2007. Ou seja, em um ano o Rio de Janeiro registrou três vezes e meia a quantidade de registros de dez anos presentes na página virtual do Ministério da Justiça. Pesquisas anteriores indicam que de cada dez pessoas desaparecidas, quatro são mulheres. Todavia, em alguns Estados elas podem superar em número os casos masculinos, como em Pernambuco e no Rio Grande do Sul. Outro dado que chama a atenção é que sete em cada dez casos envolvem pessoas negras (pretos e pardos). O estudo constatou ainda que crianças e adolescentes são os que mais desaparecem. Chama a atenção o fato de que na faixa de 15 a 19 anos os homicídios correspondem a 11,8%, enquanto os desaparecimentos, totalizam 24,8% dos casos notificados. A pesquisa constatou ainda que entre os jovens de 16 a 20 anos, mais de 80% dos casos haviam reaparecido. Infelizmente este ainda não foi o caso dos jovens desaparecidos em Luziânia*. A situação deles parece ser muito mais delicada. Sobretudo quando algumas instituições de segurança de outros países já demonstraram que as três primeiras horas são cruciais para ampliar as chances de se encontrar com vida. O que dizer, então, de 60 dias depois?

Esperamos que as políticas públicas de segurança sejam mais eficientes para que os casos de Luziânia e muitos outros também tenham finais felizes. Temos ainda outra barreira não menos importante: a publicização dos dados. Sem isso não é possível realizar uma análise aprofundada das inúmeras ocorrências. Ainda hoje no Brasil as estatísticas policiais são guardadas a sete chaves. Este é um grande problema para os pesquisadores, os meios de comunicação, a sociedade civil e o cidadão. Todos podem dar boas contribuições para compreender o fenômeno e precisam produzir informações para os cidadãos. A ampla disponibilidade dos dados é fundamental para que todos os interessados possam se debruçar sobre as informações em busca de respostas para os desaparecimentos. Sem a produção adequada dos dados e sem sua exposição continuaremos a achar que temos um grave problema pela frente, mas sequer suspeitaremos da sua real gravidade.

Dijaci David de Oliveira é doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), professor da Faculdade de Ciências Sociais (FCS) e da Universidade Federal de Goiás (UFG). Possui livros, teses e trabalhos publicados sobre desaparecidos civis.


* Entre dezembro de 2009 e janeiro de 2010, seis adolescentes com idades variando de 13 a 19 anos, desapareceram no bairro Estrela D'alva, em Luziânia, cidade goiana que fica a 66 km de Brasília. Os casos repercutiram na mídia, chegando a ser investigado pela Polícia Federal por determinação do Ministério da Justiça. Em abril de 2010, os corpos foram encontrados após a confissão de assassinato dos garotos pelo pedreiro Admar Santos, que já havia cumprido pena por pedofilia.