Foto: Álbum de Família |
As avenidas que fazem parte do
circuito de carnaval de Salvador estavam abarrotadas no dia 14 de fevereiro de
1999, um domingo. No meio da confusão de milhares de foliões seguindo os trios
elétricos, uma pessoa em estado de choque antevia o rosto de sua filha em cada
criança no caminho. Em cada canto do Campo Grande, Barra e Pelourinho havia uma
mãe em particular com o coração aos pulos, abrindo passagem entre a multidão
alheia e alegre que sambava ao som de “Juliana”, sucesso da época cantado por
Pierre Onassis, então vocalista do grupo Bom Balanço. A despeito de toda semelhança, a busca
frenética ao virar cada garotinha de frente, desvelava uma angustiante
sequência de pequenas decepções; o som da pretensa alegria dos trios era a
trilha musical que marcava o ritmo da procura por uma menina que vestia saia e
blusa lilás e usava uma sandália plástica da mesma cor; tinha o cabelo solto na
parte de trás e preso em cima com uma “xuxa” de crochê rosa. Além disso, usava
uma argolinha do piu-piu. Era Alice Ane Giselle dos Santos, 10 anos
completados dois dias antes. A vizinhança da rua Souza Uzel, 51, Federação, se
mobilizara naquela tarde carnavalesca, a mais dolorosa de todas para a
costureira Mari Neide e o mecânico Eduardo, pais da menina que já chamava a
atenção devido ao corpo que já se desenvolvia, prometendo uma bela adolescente.
A mãe se preparava para fazer um bolo de aniversário para seu Alfredo, avô de
Alice, quando ela chegara do mercado trazendo farinha de trigo. “Mainha, vou
pra casa de minha tia brincar com Graziele”, disse, logo depois. A casa ficava
a uns 50 metros. Alice foi até lá e durante poucos minutos brincou com a prima
até resolver voltar pra casa. Era sua intenção.
A voz ainda trêmula e os olhos
marejados de Mari Neide denunciam a dor causada pela ausência prolongada da
única filha, com quem só andava de braços dados. A falta da criança fortaleceu
a relação do casal, que já havia decidido não ter mais filhos. A mãe passou a
se sentir um zumbi dentro de um pesadelo, perdeu peso e ainda que abalada
emocionalmente, não teve nenhum acompanhamento psicológico; o pai,
“enlouquecido”, durante anos seguidos se dedicou a investigar por conta
própria. A qualquer hora, em qualquer lugar, ele estava em busca de Alice,
chegando a acordar os mendigos que dormiam na Estação da Lapa para perguntar
pela menina, mostrando sua foto.
DESAPEGO E CRENÇA | Mari Neide já se desfez dos brinquedos,
mas ainda guarda roupas e retratos da filha. Foto: Tom Correia |
Como consequência, a situação
financeira da família entrava em declínio. Eduardo começou a perder os
clientes, já que não conseguia mais se concentrar no trabalho. O casal deixou o
apartamento em Colinas de Pituaçu, que terminou sendo invadido e hoje é
disputado em questão judicial. Passaram a morar com o pai de Mari Neide, na
mesma casa onde viram Alice pela última vez. “No início as pessoas nos
ajudaram, mas o tempo vai passando e elas foram se afastando, porque cada
pessoa tem sua vida pra cuidar. Apesar da gente ouvir alguma palavra de
conforto, o problema passa a ser só seu. Até as autoridades passam a enxergar a
situação como algo normal”, relata, Mari Neide. Segundo a Polinter, em
fevereiro de 1999 foram registradas 12 ocorrências de desaparecimento em
Salvador. Apenas uma criança do sexo feminino consta nos relatórios. É o caso
de Alice. Faz 11 anos e 9 meses que a menina meiga e estudiosa desapareceu,
deixando os pais arrasados emocional e financeiramente. As despesas incluíam
contas telefônicas astronômicas, viagens a cidades como Ilhéus e até
combustível dos carros emprestados aos agentes para que fizessem investigação.
Riscos e quase re-encontro
Em dois momentos, durante todo esse
tempo, os pais de Alice acreditam que seguiram pistas capazes de solucionar o
caso, mas foram obrigados a parar por chegarem aos seus limites. Através de uma
informação que chegou da Polinter, eles foram atrás de uma mulher que havia
ligado dizendo saber onde estava a menina. Passaram uma semana indo à invasão
do Inferninho, no bairro da Mata Escura. Além do aspecto tenebroso do lugar,
outro detalhe chamou a atenção do casal. “Quando a gente mostrava a foto, as
pessoas diziam 'não sei, não vi, não conheço' e corriam assustadas pra dentro
de casa. Depois passamos pra polícia o que fizemos e eles disseram que éramos
loucos, que a gente não deveria ter ido naquele lugar sozinhos, porque nem eles
tinham coragem de entrar naquele lugar”, relata. A outra pista foi investigada
por eles em Barra do Pojuca, povoado que pertence a Camaçari. Com carro
emprestado, passaram um tempo visitando escolas e mostrando a foto da filha. Lá
descobriram que uma mulher estrangeira havia tentando matricular uma criança
muito parecida com Alice, mas a menina não tinha documentos, o que impediu o
registro. Sem mais recursos para continuar viajando, não foram adiante, mas
informaram tudo à Polinter. Especialistas afirmam ser raros os casos de
crianças desaparecidas que reaparecem após tanto tempo. “Sonho com ela, só que
no meu sonho ela não cresceu, não ficou adulta ainda, vejo sempre da mesma
forma quando ela desapareceu. Mas é uma coisa que ninguém tira da minha mente:
eu só vivo pra encontrar minha filha”, reafirma.
A farda nova comprada para Alice
cursar a quinta série ainda permanece guardada, junto a antigos brinquedos.
Mari Neide afirma que já jogou muita coisa fora, tentando se desapegar da
menina ao se livrar dos pertences. Ela acredita num reencontro que toma a forma
de um milagre.
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