MISSÃO CUMPRIDA
Uma mulher obstinada, marcada por uma tragédia pessoal e que não se rendeu aos obstáculos. Estes são alguns traços da personalidade da professora Josenilda Lima, 58, que em 2000 teve sua única filha, Simone Pinho, desaparecida na Chapada Diamantina. Foram quase seis anos de buscas e sepultamento após a descoberta do assassinato cometido por José Vicente Matias, o Corumbá, um matador em série. Josenilda perdeu as contas de quantas vezes se embrenhou pelas trilhas de cidades como Lençóis, Andaraí, Mucugê, Palmeiras e vilarejos como o Vale do Capão, na expectativa de rever Simone, mas, ao mesmo tempo, com um mau pressentimento de que algo muito sério havia acontecido. Obteve a ajuda de muita gente, de guias de turismo da região e grupo de hippies a donos de pousada que não cobravam diárias quando o dinheiro da professora acabava. Só o Estado demonstrou pouco empenho. “Tudo que enfrentei e ouvi para reencontrar minha filha foi algo digno de um filme, mas um filme de terror”, revolta-se. Desde então, abraçou a causa das pessoas desaparecidas no estado da Bahia. Em 2001, recebeu medalha da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa e, no ano seguinte, fundou o Movimento Simone Pinho, que fechou suas atividades após dez anos de atuação. Alguns fatos são considerados por ela como mensagens espirituais apontando o fim de sua missão: lançar “Na Trilha da Esperança”, livro-depoimento que narra todos os detalhes de sua busca, na abertura do I Encontro Nacional de Pessoas Desaparecidas; e devolver as chaves da sala onde funcionava o Movimento no mesmo dia da audiência de Corumbá, o assassino de Simone. Para a budista Josenilda, isso tudo é muito mais do que coincidência: é um claro sinal de que sua missão chegou ao fim.
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Fotos: Tom Correia |
Tom Correia - Como nasceu a instituição fundada por você para defender famílias que tinham parentes desaparecidos?
Josenilda Lima – O Movimento Nacional de Busca e Apoio a Pessoas Desaparecidas Simone Pinho foi criado pela dor de perder minha filha, desaparecida em junho de 2000. Pelo descaso dos órgãos constituídos, pela falta de apoio da polícia, vi que não era só eu que passava por aquela situação e sem ninguém para ajudar, eu transformei minha dor em solidariedade. Senti na pele a necessidade de uma organização para ajudar aquelas pessoas. Simone foi assassinada pelo serial killer José Vicente Matias, vulgo Corumbá, que ceifou a vida de seis mulheres em vários estados brasileiros. Minha filha foi sua segunda vítima e sofri demais nas buscas. Fui à Polinter e quem me atendeu foi a Drª. Clara [Delegada Clara Argolo]. Ela me tratou bem, foi sincera: disse pra mim que não tinha como mandar policiais para Lençois, que infelizmente não tinha sido aqui, e que os recursos não existiam. A única coisa que ela poderia fazer era um ofício para que eu levasse ao delegado de Lençois. Foi o que eu fiz, ela perguntou, você leva? Eu disse: 'me dá agora que eu já tô indo'. Fazia um mês que Simone estava desaparecida porque antes disso eu tinha resolvido procurar sozinha, pensei que ela voltasse logo, que não precisasse de dar queixa numa delegacia. Mas quando a 'ficha caiu', vi que ela tinha desaparecido mesmo. Quando cheguei desesperada em Lençois com o ofício da Polinter na mão, eu chorava mais do que falava e o delegado de Lençois nem sequer me atendeu. Ele estava do lado de fora da delegacia e nem me convidou pra entrar, olhou o ofício e me devolveu na ali mesmo.
TC - Você lembra o nome do delegado?
JL - José Carlos de Oliveira Couto, eu nunca vou esquecer esse nome na minha vida! [se exalta]. Enquanto vida tiver, vou falar desse delegado arbitrário, que não cumpriu com os deveres dele e cerceou o meu direito de mãe de procurar minha filha. Ele disse: 'Ora, senhora, sua filha é uma mulher. No mínimo ela deve estar ali no Capão usando drogas'. Isso não se fala para uma mãe! Ele não me conhecia, não sabia quem eu era, não conhecia Simone. Talvez se ele tivesse tomado as devidas providências naquela hora, ela ainda estivesse viva, porque ela foi assassinada logo depois. Não posso afirmar, mas talvez pudesse ter salvo minha filha ou a encontrado logo. O réu confessou o crime e pela data que ele deu (sei que não posso confiar na palavra de um assassino), ela ainda estava viva. Levei cinco anos e meio para descobrir a verdade e mais oito meses lutando na Justiça para que o assassino cruel mostrasse onde tinha enterrado o corpo. Só depois de seis anos o meu martírio acabou. Minha filha foi sepultada em 24 de março de 2006, mas a tristeza não tirou do meu coração a vontade de continuar ajudando, porque ninguém mais do que eu sabia o tamanho da dor que é ter uma pessoa querida desaparecida.
Nota: a reportagem não conseguiu localizar o delegado citado pela entrevistada.
TC – O que levou o Movimento Simone Pinho a encerrar suas atividades?
JL - Nossa ONG foi desativada porque apesar da diretoria ser composta de 13 pessoas, cada um tem os seus afazeres e só eu, como presidente, executava o trabalho. Para isso, eu dedicava meu tempo integral à entidade. Como sou professora da Prefeitura de Camaçari, fui obrigada a retomar minhas atividades naquele município, deixando a ONG funcionando apenas com voluntários. Mas meu afastamento se refletiu logo na queda do número de pessoas cadastradas e, principalmente, as localizadas. Não tinha a menor condição de fazer as duas coisas ao mesmo tempo: trabalhar 40 horas em Camaçari de segunda a sexta e tocar o Movimento. É como alguém já me disse: 'O Movimento Simone Pinho não existe, o Movimento é você'. E eu já vi que realmente sem Josenilda o Movimento Simone Pinho não existe. Então, como não podia abandonar meu trabalho, o fechamento foi inevitável.
TC – O Movimento contou com algum tipo de ajuda particular ou institucional, nunca houve apoio do governo?
JL - Infelizmente, não. O único apoio que tive foi da Casa Civil [Prefeitura de Salvador] e mesmo assim foi recentemente. Tentei fazer parcerias, mas ninguém dava importância aos meus projetos: eu levava, eles recebiam e depois perdiam porque quando eu voltava pra procurar não existia mais, ninguém sabia onde estava. E nunca era aprovado um projeto, nem mesmo pelo Fundo Municipal de Defesa à Criança e ao Adolescente. Não foram poucas vezes não. Empresários nem pensar. Só despertam quando sentem na pele. Durante todo esse período, a ONG foi mantida com recursos próprios. Eu dividia meu salário de professora para manter a instituição. A Casa Civil me ofereceu uma sala com telefone, internet, condomínio e luz, tudo pago por eles, para que eu deixasse de pagar aluguel, ajuda essa que vou agradecer pelo resto da vida, pois foi a primeira e única. Eu também tinha ajuda do Movimento Mães da Sé, de São Paulo, que também trabalha com este fim, mas a parceria era restrita à divulgação das pessoas desaparecidas.
“Não saber o que aconteceu com seu ente querido é a pior situação, você morre por dentro a cada segundo”
TC – Como funcionava a parceria com a Coelba?
JL - Eu mandava as fotos e eles divulgavam nas contas de energia de todo o estado da Bahia, com meu telefone. Se alguém sabia de alguma informação sobre aquele desaparecido ligava pra mim e aí eu tomava as providências, ligava pra saber se a informação era verdadeira para 'correr atrás', saber se realmente era o desaparecido procurado. A gente ligava pra família, íamos até o local onde estava a pessoa. Já aconteceram reencontros incríveis. Uma vez colocamos a foto de um jovem de Camaçari na conta de energia e alguém ligou pra mim dizendo que ele estava vivendo nas ruas em Periperi. Pedi que a pessoa segurasse o rapaz pra gente checar se era realmente ele. Liguei pra família, eles foram lá, ficaram em dúvida se era o rapaz. Fizeram o teste de impressões digitais, não deu positivo, mas mesmo assim essa família tirou esse jovem da rua, cuidou de sua saúde e o levou pra casa. Um belo dia, mesmo com os problemas mentais, ele falou o nome dele e disse onde a família morava. A senhora que o acolheu, pegou o endereço e foi ao local com ele. Quando a mãe viu o filho chegando, quase enlouqueceu de tanta alegria: o filho dela estava desaparecido há 10 anos e ela já se dizia sem esperança de reencontrá-lo. Veja só. Não foi o caso que divulgamos na Coelba, mas foi uma outra pessoa que também estava desaparecida.
TC – Quanto foi investido no Movimento durante esses oito anos?
JL - É difícil dizer porque algumas coisas eram contabilizadas quando tinha nota fiscal e o resto eu não contabilizava porque não era ninguém particular que me dava, era do meu bolso. Eu não precisava dar satisfação a ninguém, quem sempre manteve essa ong fui eu, com recursos próprios. Mas acredito que investi algo na faixa dos R$ 10 mil.
TC – Qual foi a reação das pessoas diante do fechamento da ONG?
JL - O desespero de quem sempre contou com o Movimento Simone Pinho era visível, as pessoas me perguntavam: 'E agora, o que vamos fazer sem você?'. Um dia, eu estava a caminho do trabalho em Camaçari e uma mãe ligou. Ela não chorava e sim gritava de tanto desespero, ela queria desabafar, precisava do meu apoio, queria chorar no ombro de quem compreendia a dor sentida. Ela só perguntava 'quando é que você volta? O que vai ser de nós sem você?'. E aí, já sabe o que acontece. De mãos atadas, sem poder fazer nada, também comecei a chorar. E assim vou seguindo em frente, rezando para cada uma delas, para que o seu desespero tenha um fim, porque por mais trágico que seja o resultado, não saber o que aconteceu com seu ente querido é a pior situação, você morre por dentro a cada segundo.
“Alguém que tiver o seu desaparecido que vá procurando outros meios porque a polícia só sabe tratar mal”
TC – Como você avalia a relação da mídia com os desaparecidos? Você acha que eles buscam apenas audiência ou prestam um serviço importante à população?
JL - Olha, a mídia simplesmente mostra a foto dos desaparecidos. O trabalho de bastidores era feito pelo Movimento Simone Pinho. Quando as pessoas ligavam para informar onde estava aquele desaparecido era o Movimento que entrava em contato com as famílias. A mídia mesmo só mostra a foto.
TC – Você considera o Estado omisso em relação aos desaparecidos?
JL - E muito, muito mesmo. É preciso que eles acordem para esse grave problema social. Eu acho que eles estão esperando que aconteça na vida deles para poder reagir e tomar uma atitude. É muito omisso sim. Campanhas poderiam ser feitas e mesmo após o desaparecimento as diligências deveriam ser mais rápidas.
TC – E como você avalia o tratamento dispensado às famílias que procuram a Polinter?
JL - O que mais choca é o tratamento da polícia para com essas famílias, em total desespero, e ainda ouvir barbaridades como: 'Você ainda procura? Seu filho é um errado, que estava no local errado, na hora errada e com a pessoa errada. Desista, ele está morto'. Ou como o delegado de Lençóis me tratou, se recusando a receber o ofício que a Polinter lhe enviou, dizendo que minha filha era maior, que nada podia fazer e que a única viatura que ele tinha era para assessorar a política, pois estava na época de campanha eleitoral. O descaso da polícia é demais. No meu caso, poucas vezes a polícia ajudou, pelo contrário, às vezes atrapalhou muito. Alguém que tiver o seu desaparecido que vá procurando outros meios porque a polícia só sabe tratar mal, só te trata mal. As mães chegam chorando, apavoradas porque falaram dos filhos delas sem conhecer. Não se diz uma barbaridade para uma mãe que está sofrendo. Tem que ter mais humanidade.
TC – Além de catalogar 3.091 pessoas e ajudar a localizar 656 desaparecidos, quais as outras principais contribuições do Movimento para a sociedade?
JL - O movimento colaborava com a mídia, com os quadros da TV Bahia e da TV Aratu. Era eu que levava todas as famílias para procurar seus desaparecidos, então o prejuízo do fechamento do Movimento Simone Pinho é muito grande. Esse trabalho foi a melhor coisa que já me aconteceu. Eu descobri que feliz é quem dá e não quem recebe, descobri que a melhor coisa do mundo é ajudar. Quando você vê uma mãe desesperada, te pedindo socorro e você consegue fazer aquela pessoa voltar a sorrir, não há maior felicidade no mundo. Não sou mais a mesma depois desse trabalho. Aprendi a dar valor às pequenas coisas que antes não tinham importância, consigo enxergar muito mais além, a minha mente se expandiu e eu comecei a ver o mundo de uma maneira diferente, mais humana. Eu descobri que todos são iguais e que todos podem um dia acordar e não encontrar o seu ente querido, porque ele simplesmente desapareceu. Não foi só comigo, também pode acontecer com qualquer pessoa, é preciso ajudar se você quer um mundo melhor.
TC – O Movimento Simone Pinho não volta mais?
JL - Olha, para registrar tudo certinho é uma mão-de-obra. Se eu soubesse antes, não sei se 'embarcaria' nessa. Mas como na época eu estava envolvida com o caso da minha filha assumi porque estava doendo mesmo, mas agora que esfriou, que a poeira baixou, eu já tenho consciência do que é fundar uma ONG, vou pensar duas vezes se vou fazer isso mesmo sem ajuda de ninguém. É muito difícil, é muita burocracia, muito tempo perdido, muita luta. Sinceramente eu não abriria mais não. Eu poderia tentar ajudar de uma outra forma, mas como funciona hoje, devidamente registrada, com tudo legalizado nos órgãos, não sei se faria mais. Quando me aposentar, aí vou pensar de que forma vou continuar a ajudar os desaparecidos. Agora, com essa responsabilidade que tomei pra mim sozinha, não sei se teria coragem não...
“Não se diz uma barbaridade para uma mãe que está sofrendo. Tem que ter mais humanidade”
TC – O site do Simone Pinho vai continuar ativo?
JL - Vai. É a única coisa que ninguém pode me obrigar a fechar. Até quando eu puder vou continuar com esse site ativo. Os cadastros na Piedade não vão continuar porque não tenho condição, mas quem quiser pode fazer o próprio registro da pessoa no site.
TC – Valeu a pena, Josenilda?
JL - Só valeu... e como valeu... e digo com pureza d'alma que não sou a mesma pessoa de jeito nenhum. Depois desse trabalho, sou uma pessoa riquíssima espiritualmente, e outra coisa, com uma fortaleza dentro de mim que não adianta: não venha, porque se ficar na minha frente vou esmagar. Se é pra me prejudicar ou pra prejudicar alguém desaparecido, saia da minha frente, porque se eu disser ‘vou vencer’, ninguém me derruba, não. Se eu tomar pra mim aquela dor, vou vencer. Josenilda antes não dava uma palavra, era aquela pessoa tranquila, que não conversava, mais ouvia do que falava... hoje falo mais do que ouço, falo muito porque tenho muito a dizer. E a experiência que eu passei não tem universidade que supere.
* Esta entrevista contou com a colaboração da jornalista Arlita Santana, que assinava a coluna “Onde Está?” do site www.aqueimaroupa.com.br